Desenho Directo

A expressão Desenho Directo aplica-se neste contexto para destacar um tipo de registo gráfico, analógico ou digital, sobre um suporte qualificado, que de uma forma natural, torna visível o que não existe, ou seja, que de um momento para o outro poderá tornar visualmente perceptível o imprevisível.

É o tipo de registo que à partida não está vinculado apenas a uma matriz criativa, quer ela seja de ordem conceptual, estilística ou técnica, mas que carrega todo o conhecimento do passado e do presente, no instante em que o desenhador se põe em acção.

O desenho surge aqui como meio de criar para o mundo visível, não apenas do tirado pelo natural, enquanto tal, mas acrescentando tudo quanto esse natural necessita e não possui. É este o projecto que está a ser por nós desenvolvido, com uma gramática de morfologias adossadas à anatomia humana.

A criação de anatomias fantásticas concebe seres para lhes atribuir vida, criaturas com potencialidades e características singulares que poderão coabitar em mundos onde as suas morfologias melhor se adaptem, num ambiente propício.

Este trabalho de autor parte do existente para o desconhecido, é esta a base do fantástico aqui tratada que, vinda do oriente, nasceu do pressentimento da existência de mundos para além dos sabidos, surgindo inicialmente em ancestrais relatos orais posteriormente passados a escrito, no séc. V a. C., por autores como Ctesias de Cnido. Falamos de um imaginário baseado nas características morfológicas do Homem e elaborado numa área geográfica de fronteiras antropológicas marcadas, onde a diversidade plástica é bastante visível ­- a zona do mediterrâneo oriental.

Na primeira fase da investigação desenvolvemos um registo circunscrito às descrições dos textos, inspirado nas fusões anatómicas e nas anatomias híbridas, surgidas em antigas ilustrações. Depois de uma longa inventiva gráfica, o projecto foi reorientado para a criação de morfologias bio-inspiradas, derivadas da necessidade de produzir novos atributos, necessários para desenvolver as potencialidades dos diferentes seres criados.

Os procedimentos técnicos desenvolvem-se entre o registo analógico e a criação digital realizada em gráficos 3d por computador. Digamos que são meios complementares de criação de personagens, difíceis de harmonizar. Ambas as técnicas são exigentes, solicitando sempre a regularidade e a dedicação do investigador. O desenvolvimento gráfico analógico requer continuidade do registo, para apuramento da linguagem e do contexto poético. A criação digital obedece a procedimentos técnicos, que tendem à especialização em diferentes programas complexos.

Consideramos que é na intersecção destes dois procedimentos de registo que se situa o potencial do nosso trabalho. Não nos confiamos a uma rotina de linguagem analógica nem ao uso das ferramentas do software, ou seja, situamo-nos justamente numa fronteira de técnicas acompanhadas de contextos teóricos favoráveis à criação artística. Produzimos um estaleiro de morfologias no qual, evocando a anatomia humana, emergem criaturas com atributos especiais para habitarem um mundo visual 2D e 3D. Este tipo de produção não é em momento algum uma produção acabada, ficando sempre em aberto o seu desenvolvimento, potenciando os diferentes desafios que outras linguagens possam estimular.

O método de criação passa pela produção de desenhos de contexto anatómico no atelier, que é aberto, integrando o público visitante enquanto boa colaboração, permitindo a este interagir com a obra através de dados nocionais e fisiológicos. A história e as características de cada ente criado e do seu habitat, poderão então sofrer transformações à medida da evolução das interacções, ao longo dos vários registos.

O Estúdio Aberto faz também parte de uma estratégia de acção criativa e de divulgação do trabalho de acordo com a sua dinâmica, já que há em torno das linguagens por nós usadas preconceitos de percepção, resultantes da excessiva presença de procedimentos artísticos de captura, que têm sido o motor da produção de grande parte das obras de arte do final do século XX: referimo-nos à fotografia, ao vídeo e às artes performativas, dentro das artes plásticas.

A actualidade técnica deste trabalho poderá observar-se pelo facto de a associação do desenho à criação digital só ter sido possível a partir da primeira década do século XXI, já que as tecnologias que lhe estão na base só ficaram em condições de ser usadas com eficácia, nos finais da década de 90. Como naturalmente existe sempre um atraso na integração dos meios técnicos na produção artística, compreende-se o excessivo protagonismo da criação baseada na apropriação, com origem consciente na segunda década do século passado pelo ready-made, reforçada pelas correntes conceptuais do final da década de sessenta e dos revivalismos dos anos 90 e de 2000. A aparente vanguarda que baseia o seu protagonismo artístico na apropriação e captação do real, com as suas diferentes estratégias e diferentes vertentes técnicas, tem impedido a visibilidade da arte baseada no acto natural de tornar visível, de produzir o novo, embora esta esteja progressivamente a ser reposta pelo avanço das novas tecnologias.

Sabemos que a captura é mais fácil do que a criação e que aquela tem um maior grau de espectacularidade, derivado da sua natureza mimética. Possivelmente é o seu modus operandi que em parte desencorajará a acção criativa natural. Esta poderá ser uma das explicações que, em termos de geração, tem atrasado a entrada da arte digital mais elaborada no mundo artístico tradicional.

Pensamos que a qualidade da obra existente no mundo virtual não tem sido devidamente considerada pelas entidades que divulgam e monitorizam a criação artística, possivelmente a História da Arte e dos artefactos artísticos do princípio deste milénio terá de ser refeita, terá de adquirir outros modos de detecção do importante, diferentes daqueles que têm sido praticados nos sistemas de apresentação tradicional.

Sobre estas matérias não falamos de cor, testámos as instituições de divulgação artística e sabemos do que falamos: a obra baseada na captação ainda é tida como a vanguarda nos centros de apresentação artística. Ora, a Arte baseada nos modos do desenho analógico de dar a ver e na criação digital, apresentada on-line, é uma realidade nova que deverá ser reavaliada.

Para aproximar o trabalho do público, para além do estúdio aberto, criámos um site onde regularmente se realizam exposições on-line que, embora não revelando toda a potencialidade do trabalho, expõem-no com um ritmo apropriado à velocidade da sua produção.

As Exposições on-line e o Estúdio aberto complementam-se e dão ao investigador a possibilidade de sentir a acção do seu trabalho na sociedade que, pelo modo tradicional de apresentação ainda em vigor, estaria condenada.

A criação da obra de arte pelo procedimento natural que descrevemos, feita de acordo com o decorrer da presente investigação, é certamente oposta a uma arte espelho que tem preenchido, durante gerações, o nosso panorama artístico. Portugal, enquanto país periférico, tem a tradição de absorver os ciclos artísticos acriticamente e de aceitar como extraordinárias as directrizes derivadas dos diferentes centros difusores que, ao longo dos séculos XX e XXI, vêm protagonizando as tendências e as linguagens artísticas no ocidente.

Ao percorrer os museus portugueses, nas alas dedicadas aos séculos XX e XXI, encontramos facilmente esta confirmação.

Ora, uma Arte global, com as características tecnológicas e de comunicação da actualidade em permanente interacção, deixará de ter centros de difusão unilaterais e, por consequência também, deixará de ter periferias acriticamente absorventes, logo a obra de arte será tendencialmente criação natural produzida com qualidade, em qualquer lugar.

Uma outra tendência que nos apraz salientar é a substituição do conceito de artista criador, deixando esta designação de ser aplicada, de facto, ao artista plástico que age como manipulador de procedimentos e de acções, pelo de um novo protagonista, o investigador, que assenta o lugar da inovação na tecnologia e na universidade. Serão derivadas das universidades e resultantes de uma produção e divulgação em rede, as propostas artísticas mais inovadoras. Estas são consequência de um trabalho colectivo e solitário que na Web, entre fóruns e redes, se transferem do mundo real para o virtual, tendendo a deixar os espaços expositivos tradicionais remetidos para lugares tendencialmente arqueológicos, povoados de objectos que cada vez mais se desajustam do nosso tempo.

Nas Artes, sentimos que a transição do século XX para o século XXI se situa no final da década de 90, por isso pensamos que a nossa viagem é paradigmática mas segura, estamos num rio invisível em que já é possível navegar.

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 18 de Fevereiro de 2011.

Jorge Castanho